sábado, 23 de março de 2013

Preguiça criativa

Já li vários textos de muitos e talentosos cronistas nos quais eles dissertavam sobre as dificuldades de sua função. Escrever sob encomenda, cumprir prazos, correr contra o tempo. Assim como um quadro que é idealizado aos poucos pelo pintor ou um poema que é trabalhado pelo poeta, acredito que, não somente a crônica, mas qualquer texto, seja ele literário ou não, deva ser feito com paciência, esculpido com vagar, com atenção aos detalhes, tal fosse uma xilogravura.

No momento, encontro-me em uma estranha preguiça criativa. Lembro-me de, no início desse ano, prometer a mim mesmo a meta produtiva de duzentos e cinqüenta textos. O problema é que essas coisas não podem ser medidas pela quantidade. Escrever só por fazê-lo fará desse amador ofício um ato monótono e desprovido de emoção. Para isso, já basta minha rotina no trabalho. Então, por eu ter me imposto essa missão, estou um tanto quanto impaciente com essa falta de produtividade, mesmo sabendo de tudo que descrevi acima sobre a proporção inversa entre qualidade artística e alta cadência produtiva.

Tenho tentado escrever resenhas, mesmo quando não tenho inspiração para realizá-las. Até a leitura tem sido algo improdutivo. Temo haver alguma engrenagem que necessite de manutenção ou troca em meu abalado sistema. A mente se perde no espaço, volta, vai-se de novo, as páginas não fluem. Excetuando-se as notícias de jornal, narrativas indiferentes e corriqueiras essas, romances, contos e até as histórias em quadrinhos estão encontrando um estranho e impenetrável bloqueio. As palavras também andam me escapando, não somente pela falta de inspiração, mas sim por conta de erros imperdoáveis mesmo para um medíocre aluno de Letras, que tem confundido palavras, distorcendo tudo, passando situações constrangedoras. Uma lástima.

No dicionário Aurélio, o termo “fase” possui várias definições, aplicando-se uma a esse caso: “época ou período com características definidas”. Espero que esse momento constituído de hiato produtivo seja breve e que eu volte a escrever de maneira fluente e prazerosa, como falso, chinfrim e canastrão jornalista que sou, caso contrário, o dono desse blog emitirá uma carta de demissão por justa causa ao seu único e fiel empregado.

quarta-feira, 6 de março de 2013

A ótica de Vladek Spiegelman

Quando o tema holocausto é colocado no centro de uma obra, seja ela literária ou cinematográfica, muitos dirão que a intenção de seu autor é ganhar foco e prêmios. 

De fato, filmes que retrataram os horrores da Segunda Guerra Mundial (como O Resgate do Soldado Ryan e O Pianista) ganharam uma quantidade razoável de Oscars, assim como livros (A menina que roubava livros e O menino do pijama listrado, por exemplo) viraram best sellers.

Porém, por mais que se pregue que o motivo das premiações foi a temática, as obras acima citadas são de excelente qualidade, pois aproximam leitores e espectadores daquela inimaginável realidade. Recentemente, descobri que uma história em quadrinhos premiada com Pulitzer, não apenas aproxima, mas extrapola essa grande barreira e coloca seu leitor dentro dos campos de concentração nazistas, ao ponto de sentir o odor da podridão dos campos de extermínio.

Maus, de Art Spiegelman, é uma obra conhecida no mundo todo pela sinceridade com que os fatos são narrados. Spiegelman, através da voz de seu falecido pai, personifica com maestria os judeus como ratos e os nazistas como gatos através da ótica de Vladek Spiegelman, que relata a seu filho a desgraça que acometeu toda a sua família em paralelo com a derrocada polonesa diante da invasão alemã. Vladek, um velho ranzinza, racista e reacionário, mostra o quão escabrosas podem ser a situações que um homem se sujeita para sobreviver.

O quadrinista se envolve de tal modo com os relatos de seu pai, que todo aquele absurdo chega a afetá-lo psicologicamente, gerando uma profunda crise existencial. Seu traço simples e competente apresenta uma realidade nua e crua, que nem o cinema e todos os seus efeitos especiais, ou mesmo a literatura, com seu infinito poder imaginário, poderiam representar.

Independente dos prêmios e clichês, Maus deve ser lido com uma visão diferenciada, mesmo por aqueles que ainda duvidam que o holocausto realmente aconteceu.  

segunda-feira, 4 de março de 2013

No Ar

Como todos sabem, o Brasil tem em sua história um período de grande opressão e violência àqueles que se opunham ao regime político implantado de maneira forçosa entre os anos de 1964 e 1985. A ditadura militar fez inúmeras vítimas (algumas delas desaparecidas até hoje) e ainda causa espanto quando é relatada por meio da literatura e do cinema. 

Agora imagine se esse período fosse adaptado para as histórias em quadrinhos, com as característica dos filmes e romances policiais de estética noir. Pois o roteirista Raphael Fernandes e o desenhista Abel imaginaram e criaram a excelente série de tiras Ditadura No Ar.

O protagonista dessa violenta e instigante história é Félix, um fotógrafo que tenta a todo custo encontrar sua amada, Lenina, uma mulher nascida em berço de ouro, comunista por opção (o nome da moça alude a uma inversão de gênero para o nome do famoso revolucionário russo).

O roteiro de Raphael lembra a dureza do texto policial de Raymond Chandler, o que coloca Félix como um tipo de Phillip Marlowe brasileiro, duro na queda, que sofre e resiste bravamente às torturas física e psicológica impostas pelos milicos. Os desenhos de Abel passam ao leitor imagens que remetem aos mais célebres filmes policiais, captando com muita competência a ideia da estética noir. E, claro, o título é uma grande sacada poética, pois faz com que a sonoridade da frase em português remeta ao termo francês.

Não se deve subestimar Ditadura No Ar pela extensão de suas duas primeiras edições. Apesar de curtas, elas são densas e nos convidam a refletir, mais uma vez, sobre a brutalidade e complexidade desse conturbado período brasileiro.

Ditadura No Ar é um retrato em preto e branco preciso e jornalístico das atrocidades cometidas contra aqueles que se opunham ao regime militar. Retrato esse que só um fotógrafo habilidoso e sagaz como Félix poderia captar. 

sábado, 2 de março de 2013

"Tia Julia e o escrevinhador": recomendado para todos os noveleiros

radionovelaTexto publicado no site Contraversão, em 26/02/2013.

Que o brasileiro em geral ama novelas, disso não resta dúvida. Um exemplo claro dessa paixão por folhetins foi o recente sucesso da trama de João Emanuel Carneiro, transmitida pela Rede Globo, a mais experiente emissora televisiva brasileira nesse ramo. No chamado “horário nobre”, as novelas globais atingem índices de audiência que são impossíveis de serem alcançados. No caso de Avenida Brasil, mesmo aqueles que não a acompanhavam tomaram conhecimento de suas tramas e personagens, pois ela estava estampada nos principais meios de comunicação do país. João Emanuel, nesse caso em particular, utilizou-se de uma vertente artística que aprecia muito para fazer de sua criação um sucesso arrebatador: a literatura. Mas, afinal, por que, apesar da proximidade entre esse gênero predominantemente televisivo e o literário, o brasileiro lê tão pouco?

Em Tia Júlia e o Escrevinhador, o peruano Mario Vargas Llosa (Nobel de Literatura de 2010) conta a história de Varguitas, um garoto de dezoito anos que sonha em viver da literatura, através do ofício de escritor. O menino trabalha em uma das maiores rádios de Lima e tem como função elaborar boletins informativos transmitidos de hora em hora com base nos  jornais impressos, contando o que de mais recente acontece no mundo. Porém, os maiores picos de audiência da rádio não são atingidos por conta da música latina que toca nos rádios automotivos durante o dia ou mesmo pelas pontuais notícias, mas sim quando começam suas radionovelas. No momento em que as fictícias histórias dramáticas de amores impossíveis começam a exalar pelos rádios da cidade, donas de casa suspiram ao lado de seus aparelhos radiofônicos, imaginando o quão bonitos seriam os donos daquelas suaves vozes apaixonadas.

A importância desses folhetins é tanta, que os patrões de Varguitas contratam Pedro Camacho, um boliviano extremamente perturbado que é considerado mestre na composição desenfreada de histórias mirabolantes. O problema é que, por conta da intensa cadência produtiva noveleira, Camacho chega ao ponto de misturar suas personagens em histórias que não lhes dizem respeito. Com humor refinado, Mario Vargas Llosa alterna entre um capítulo e outro as histórias do insano Camacho com a de seu protagonista, Varguitas, que também vive uma trama de novela em sua vida.

Também vinda da Bolívia, chega à casa dos tios de Varguitas uma certa Tia Júlia, parente recém divorciada, que vem a Lima tentar uma nova vida, quem sabe um novo casamento. Extrovertida e debochada, Tia Júlia não agrada Varguitas, que evita qualquer tipo de convívio com a irmã de sua mãe. Mas, para seu desespero, ela, assim como ele, é amante de cinema, e seus tios o obrigam levá-la para ver filmes, já que não conhece a capital peruana. Inusitadamente, a partir desse contato, os dois iniciam um romance proibido, digno dos mais complexos e dramáticos folhetins.

Em Tia Júlia e o Escrevinhador, Mario Vargas Llosa expõe, talvez, através de uma narrativa agradável que prende o leitor do início ao fim, uma explicação para o aparente desinteresse do brasileiro para com a literatura. As novelas televisivas propõem uma forma de entretenimento imadiato, que rega o imaginário do espectador com imagens prontas, com modelos do que se tem por beleza prontos. As fictícias personagens de Llosa, ouvintes assíduas das radionovelas escritas por Pedro Camacho, ainda têm a oportunidade de exercitar sua imaginação, criando um rosto que lhe seria particularmente compatível com aquela voz que ouvem (os donos das vozes eram, na verdade, pobres coitados dotados de extrema feiúra).

Tia Júlia e o Escrevinhador é recomendado para todos os noveleiros que queiram se desprender da televisão e exercitar a imaginação. E, claro, para aqueles que já estão acostumados a fazê-lo e gostam de boa literatura.