segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O mosaico musical de Tarantino

Texto publicado na revista Headphone, edição de número 3, em 10/01/2013.

 Um policial amarrado a uma cadeira e com várias e assombrosas escoriações pelo rosto, causadas por uma chuva de socos cruzados e diretos. Do outro lado do depósito, um distinto rapaz caminha, mãos descontraidamente enfiadas nos bolsos, cigarro despretensiosamente caído ao canto da boca, na direção do refém, que implora por misericórdia. Como se naquele momento não sentisse nenhum tipo de sentimento, a não ser o de satisfação e sossego, o rapaz liga o rádio e dá uma trilha sonora agitada e dançante a uma cena violenta e bizarra de tortura, que causará espasmos de incredulidade no espectador e ficará para sempre em sua memória.

Evidente, caro leitor, que se trata de uma cena famosa, que coloca o filme “Cães de Aluguel” (Reservoir Dogs, 1992) como um dos melhores da filmografia de Quentin Tarantino. Não apenas pela trama aparentemente simples, que ganha uma grande complexidade por conta da atuação impecável dos atores que nela atuam. Mas também por um elemento que é indispensavelmente notável nos filmes tarantinescos: a música. Com uma habilidade sem igual, Quentin Tarantino transforma suas trilhas sonoras em verdadeiras personagens abstratas, que são costuradas às personagens concretas, físicas e visuais. Poucas formas de arte conseguem promover uma canção como a sétima arte. Muitas bandas tornaram-se famosas por apenas uma música que se encaixa perfeitamente a uma cena capital do cinema. O diferencial nos filmes de Tarantino é a interação de coadjuvantes e protagonistas (se é que eles existem) com a música que está tocando. São eles que escolhem seus hits favoritos, sendo grandes entendedores musicais. Não se tratam apenas de músicas que dão dramaticidade ou acompanham a ação e o suspense de uma cena, mas sim melodias dançantes que fazem os atores cuidadosamente selecionados pelo diretor atingirem o ápice de suas atuações.

Na cena descrita inicialmente, Vic Vega (Michael Madsen) - vulgo Mr. Blonde - sintoniza o rádio em seu programa musical favorito, o “K-Billy, o som dos anos 70”, que é mencionado constantemente no decorrer da trama. Uma voz monótona e grave anuncia a próxima canção: Stuck in the middle with you, da banda escocesa Stealer Wheels. Dançando e assoviando ao ritmo do folk rock exalado pelas caixas de som, Vega inicia a tortura de sua presa, retalhando-a e decepando sua orelha com um canivete. A melodia dançante que entra em contraste com uma circunstância insana e brutal, faz o espectador viajar em uma situação absurdamente bela e grotesca, que banaliza a violência física e atmosférica do ambiente.

“Pulp Fiction” (1994) e “À Prova de Morte” (Death Proof, 2007) talvez sejam os filmes mais marcantes, musicalmente falando, da filmografia de Tarantino. As personagens são envolvidas de uma maneira intensa com o que ouvem. No longa de 1994, enquanto entabulam um diálogo cômico (por sua fútil inteligência) sobre as diferenças entre o McDonald’s europeu e americano, Vincent Vega (John Travolta) e Jules Winnfield (Samuel L. Jackson) sintonizam o rádio automotivo até chegarem ao funk do grupo americano Kool & The Gang, através da música Jungle Boogie. Eles não cantam ou falam sobre a música, mas ela está ali, oculta, dando um som ambiente predominantemente urbano enquanto o veículo desliza pelas ruas de Los Angeles, a capital da literatura noir. As cenas protagonizadas pela personagem-símbolo do filme são delirantemente inesquecíveis. Mia Wallace (Uma Thurman) se mostra uma viciada em composições que remetem às saudosas décadas de 50, 60 e 70. Ela dança antologicamente ao lado de Vincent Vega (que fez John Travolta rememorar seus melhores momentos em “Os Embalos de Sábado à Noite”) na lanchonete de temática remetente às décadas acima citadas. Muitos casais com certeza já arriscaram um remake da cena musicada por You never can tell, do lendário Chuck Berry, bombando na vitrola. E, claro, não há como não mencionar o mergulho intenso de Wallace, regado a uma dose cavalar de cocaína, nas profundezas da canção Girl, You’ll be a woman soon, da banda oitentista de alternative rock Urge Overkill, antes de acidentalmente ser acometida por uma brutal overdose. Entre as protagonistas de “À Prova de Morte” está uma incansável jukebox, devidamente instalada em um aconchegante e convidativo bar de beira de estrada. É por conta de uma música embalada por esse clássico aparelho de som que uma das cenas mais enlouquecedoras da história do cinema (exagero?) é realizada: quando Down in Mexico, entoada pelos americanos do The Coasters, começa a ser tocada, Arlene (Vanessa Ferlito) dá a Stuntman Mike (Kurt Russel) uma inesquecível lap dance de fazer muito marmanjo ter alucinações e taquicardia. Conforme o ritmo da música evoluí, Arlene desliza habilmente seu corpo em torno do maníaco e misterioso dublê. Lunático esse que joga seu carro em alta velocidade ao encontro de um veículo com cinco garotas, que ouvem Hold Tight, da banda britânica Dave Dee, Dozy, Beaky, Mick & Tich, a canção derradeira de suas vidas, antes de serem dilaceradas pelo impacto metálico dos veículos.

Em “Jackie Brown” (1997), - adaptação do romance Rum Punch, de Elmore Leonard - a personagem homônima (Pam Grier) e o agente de finanças Max Cherry (Robert Forster) são colecionadores de K7’s e LP’s de música disco, que conversam sobre os seus gostos musicais, trocando conhecimentos que dão ao espectador uma série de referências a bandas e cantores sessentistas e setentistas como Bobby Womack, Brothers Johnson, The Delfonics e The Grass Roots.

“Kill Bill – Vol. 1” (2003), - talvez o menos marcante musicalmente – apresenta as japonesas tocadoras de rock de garagem da banda 5.6.7.8’s que fazem sua platéia nipônica dançar em uma apresentação ao vivo. Esse show precede a grande matança promovida por uma certa noiva (Uma Thurman) sedenta por vingança., vestida em um macacão amarelo que remete ao imortal Bruce Lee, no clássico “Jogo da Morte” (Game of Death, 1978).

Todo esse conhecimento musical e a preocupação em adicionar à personalidade de suas personagens gostos musicais interessantes são algumas das muitas qualidades de Tarantino. No cinema contemporâneo talvez não haja diretor mais completo, que não disfarça as fontes que utiliza para beber e fazer grandes filmes. Costumo dizer que suas obras são constituídas por retalhos minuciosamente costurados por mãos habilidosas. Como resultado final, forma-se uma colcha com recortes variados do que há e houve de melhor no cinema clássico e moderno. E a trilha sonora, um verdadeiro mosaico musical, é a cereja de um bolo de tramas viciantes. 

Quentin Tarantino nos prova que, assim como a vida, o cinema sem música seria um erro.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

A psicodelia de "Casanova: Luxuria"

Texto publicado no site Contraversão, em 06/02/2013.

Linhas temporais alternativas, seres estranhos, conspirações, segredos, traições. Esse é o cenário montado por Matt Fraction e Gabriel Bá em Casanova: Luxuria, história em quadrinhos protagonizada por um indivíduo fadado a ser o gêmeo ruim, a ovelha negra, a mosca na sopa de sua família.

Casanova Quinn é o filho de Cornelius, comandante da I.M.P.E.R.I.O., uma organização que tenta manter a todo e qualquer custo a ordem no planeta Terra. A relação entre pai e filho é totalmente conturbada, mas um único ponto os faz chegar à opiniões comuns: Zephyr, a irmã gêmea de Casanova e a principal agente da I.M.P.E.R.I.O.. Durante uma missão que tinha como mote investigar irregularidades no tecido do continuum do espaço tempo, Zephyr acaba morta.

Era a gota d’água que faltava para transbordar um copo cheio. Pai e filho agora tornam-se oficialmente inimigos declarados e Casanova Quinn tem sua cabeça colocada a prêmio pela agência de seu pai. Ele não tem outra alternativa se não juntar-se à M.O.I.T.A., organização criminosa tida como principal inimiga da I.M.P.E.R.I.O.. Com acesso às duas corporações, Casanova promete fazer chover no piquenique de todos e botar fogo no mundo para salvar sua pele, já que, como ele próprio se define, é um “profissional liberal” que não recebe ordens de ninguém.

Munido de um estranho aparelho semelhante a um isqueiro, que com um clic o faz viajar por diferentes linhas temporais, Casanova passeia entre passado e futuro, tendo deja-vu‘s e moldando a realidade conforme sua conveniência.  Nessas viagens, ele trava batalhas psicodélicas de força e resistência mental e vaga por mundos dominados pela luxúria, onde robôs são fabricados para exercerem a função de incansáveis prostitutas, constituindo cenários sci-fi em que a relação entre homem e máquina atingiu patamares inimagináveis.

Esse enredo, roteirizado de maneira complexa por Fraction, é traduzido pelo belo e forte traço de Gabriel Bá, que contribui para a sensualidade presente nesse arco dedicado ao pecado capital que se refere aos prazeres carnais. A coloração dada pela brasileira Cris Peter é algo de realmente se admirar. Com apenas quarenta e cinco cores escolhidas a dedo pelo desenhista, Peter fez uma bela “fotografia”, com uma coloração predominatemente verde, que contribui para o tom sombrio e lisérgico da trama. Quem gosta de cinema certamente apreciará. As imagens muitas vezes lembram a espetacular fotografia do recém-lançado longa “O Mestre”, de Paul Thomas Anderson, que, assim como a referida H.Q., trata de tempos e vidas paralelas.

A luxúria sideral e psicodélica das alternativas linhas temporais desse arco, faz com que aguardemos ansiosamente pela chegada do próximo pecado capital às prateleiras.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Robin - A evolução do Menino-Prodígio

Texto publicado no site Contraversão, em 04/02/2013.

Desde que fui iniciado nos quadrinhos de super-heróis há mais ou menos vinte anos, tenho como personagem preferido o Batman. Não só pela personagem em si, mas também por todo o universo que o cerca, bem como os outros vigilantes que habitam Gotham City. Um desses vigilantes, de maneira particular, nunca despertou minha simpatia. Não pelo seu papel secundário, mas sim por parecer um indivíduo que apresenta uma eterna fragilidade. Porém, recentemente, nos arcos que envolvem o reboot realizado pela DC Comics em todo o seu universo, tive a grata surpresa de encontrar uma personagem  infinitamente mais complexa e interessante, que toca em temas que sempre afligiram o código de conduta do Homem-Morcego. Uma personagem que me faz esperar ansiosamente pela chegada de uma nova edição, no mês seguinte, curioso pelo que pode ocorrer nas próximas páginas. Essa personagem já teve várias identidades secretas, mas nenhuma foi tão fria, brutal e sombria quanto à de Damian Wayne, o atual Robin.
 
Dick Grayson, o primeiro a vestir o uniforme do Menino-Prodígio, ficou sob a tutela de Bruce Wayne após seus pais, os acrobatas circenses  denominados “Os Graysons Voadores”, serem assassinados por um gangster que extorquia dinheiro do circo em que trabalhavam. Batman ensinou técnicas detetivescas e de artes-marciais ao seu pupilo, que se tornou seu parceiro no combate ao crime. Grayson assumiu um ar mais maduro e independente quando  se tornou o vigilante denominado Asa Noturna. Jason Todd, seu sucessor, foi um marginal recrutado pelo Batman ao ser flagrado em uma tentativa de roubar as rodas do Batmóvel. Foi assassinado de maneira brutal pelo Coringa em uma emboscada.

Quando comecei a acompanhar mais assiduamente as revistas do Morcego, há mais ou menos 14 anos, o Robin era representado pelo adolescente expert em informática Tim Drake. Apesar de suas habilidades detetivescas, Drake sempre cumpriu seu papel de acordo com as ordens de seu mentor, parecendo uma criatura frágil e sem personalidade. O Cavaleiro das Trevas ainda parecia atormentado pela tragédia envolvendo Jason, por isso protegia excessivamente Drake. Além dos Robins acima citados, duas garotas já assumiram a identidade. O exemplo mais clássico se encontra na obra-prima de Frank Miller, O Cavaleiro das Trevas, em que a garota de apenas treze anos Carrie Kelley auxilia o já envelhecido Bruce Wayne. Stephanie Brown, a vigilante adolescente conhecida como Salteadora, namorada de Tim Drake, chegou a ocupar o cargo por um breve momento, sendo destituída ao desobedecer a uma ordem de Batman.

Damian Wayne representa algo nunca visto no que diz respeito às atitudes de seus antecessores. Filho de Bruce Wayne com Talia Al Ghul (filha do eterno vilão Ra’s Al Ghul), o menino foi severamente treinado pela brutal Liga das Sombras, tornando-se um exímio praticante de artes-marciais variadas e uma verdadeira máquina de matar. Ao instituí-lo como Robin, o Cavaleiro das Trevas descobre que é impossível controlá-lo. Damian não entende o motivo pelo qual seu pai não mata os assassinos, estupradores e vigaristas que habitam Gotham City. Todo infrator que atravessa o caminho desse novo Robin sofre com uma violenta chuva de golpes que são capazes de estilhaçar qualquer estrutura óssea. Cada edição da revista Batman e Robin (publicada pela Panini Comics no título A Sombra do Batman) mostra uma série de conflitos entre pai e filho. Mesmo possuindo um estreito laço sanguíneo, Damian e Bruce são completamente distintos ideologicamente. O menino de somente dez anos mostra uma inteligência fora do normal e não aceita as imposições do pai, que, assim como fazia com os Robins anteriores, frequentemente o deixa de fora de perigosas rotas noturnas. O problema é que esse Menino-Prodígio é um touro indomável sedento por sangue, que não aceita ser repreendido. Até mesmo o uniforme utilizado por ele simboliza algo diferente de tudo o que já foi visto a respeito de Boy Wonder: uma blusa com capuz e calçados com certo estilo punk que aumentam o ar rebelde dessa arma letal.

A revista Batman e Robin é um dos títulos mais elogiados pela crítica nesse atual e conturbado cenário da DC Comics. O trabalho que vem sendo feito pela dupla Peter J. Tomasi e Patrick Gleason é algo realmente notável. Roteiro e narrativa gráfica  se entrelaçam de maneira empolgante em histórias que envolvem mistério, traição e vingança. Tomasi e Gleason estão manejando de maneira muito inteligente as violentas e sombrias aventuras dessa clássica dupla dos quadrinhos, principalmente pelo enfoque dado no primogênito de Bruce. Como havia dito no início do texto, Robin sempre esteve longe de despertar meu interesse. Atualmente, é uma das minhas personagens favoritas. Vale muito a pena dar uma conferida.

Damian Wayne é um chute na cara (inclusive na minha) daqueles que sempre menosprezaram o vigilante mirim de Gotham City. Mais do que isso: ele representa a evolução do Menino-Prodígio.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

"O centauro no jardim": Um manual da vida

Texto publicado no site Contraversão, em 01/02/2013.

Uma mãe em trabalho de parto geme em sua cama, localizada numa pequena casa situada no interior do Rio Grande do Sul. Enquanto a parteira se esforça para trazer o seu bebê ao mundo exterior, o pai e marido anda de um lado para o outro, ansioso para que tudo acabe bem e então ele possa saber o sexo da criança. Quando a parteira finalmente consegue tirar a criança do ventre da mãe, um grito de horror percorre a casa. O pai corre para ver o que estava se passando, a surpresa: uma estranha combinação de ser humano e cavalo jazia ao pé da cama. Um centauro acabara de chegar ao mundo.

Em O centauro no jardim, Moacyr Scliar (1937 – 2011) mostra todo o poder de seu imaginário ao narrar a saga de Guedali, um centauro nascido em uma pequena fazenda no distrito gaúcho de Quatro Irmãos. Conhecido por possuir uma narrrativa rica que aborda temas e seres míticos, Scliar nos coloca diante da possibilidade (ou seria certeza?) de convivermos com seres mitológicos. O que aconteceria se eles realmente existissem e passassem a habitar nossos cotidianos? Catástrofes, no mínimo, como foi provado a partir dos primeiros contatos com seres totalmente (ou não) humanos.

Desde seu nascimento, Guedali obviamente encontra dificuldades para se adaptar a um mundo habitado por seres escancaradamente diferentes de sua anatomia. Narrado em forma de memórias pelo próprio protagonista em idade já avançada, o romance mostra todas as dificuldades encontradas pela família do então menino Guedali para educar um ser metade homem, metade equino, que possuía instintos e necessidades voltados para suas duas naturezas e precisava ficar a maior parte do tempo escondido em uma quarto escuro, fora do alcance de olhares estranhos.

Como não poderia deixar de ser, o centauro passa constantemente por crises existenciais. Afinal, qual seria a sua verdadeira natureza? A humana, que o faz desejar mulheres? Ou a equina, que o incita a copular com as éguas que habitam a pequena fazenda onde nasceu? Quando se vê um adolescente quase adulto, o centauro cai no mundo, passando por diversos lugares em que tem contato com seres e personagens igualmente inusitados, que contribuem para o efeito mítico da história. Além das situações curiosas que só um ser desse gabarito poderia vivenciar, Guedali tem experiências peculiares a todos os homens, como o primeiro amor, o gosto pela leitura, as vontades de formar-se em determinadas profissões… Ao narrar a trajetória do seu famigerado centauro, que passa por Porto Alegre, São Paulo e chega até ao Marrocos, Scliar mostra ao seu leitor que a vida é uma sucessão de idas e vindas, acasos e coincidências, e que devemos percorrer o mundo inteiro, caso seja necessário, para descobrir quem realmente somos.

Em tempos de O Senhor dos Aneis e O Hobbit, com suas longas e letais jornadas repletas de seres fantásticos, O centauro no jardim é um livro sobre uma expedição muito mais incerta e perigosa: a vida. Moacyr Scliar, com seu fabuloso imaginário criativo, nos deixou uma obra que ultrapassa o conceito de fantástica ou pós-moderna. É um verdadeiro manual da vida.